Lei Roraima
O DECRETO FEDERAL 6.514/2008 É NORMA DE ALCANCE NACIONAL? CONSIDERAÇÕES SOBRE O JULGAMENTO DAS ADINs 7200/7204 ACERCA DA LEI 1.701/2022 DO ESTADO DE RORAIMA
Alexandre Burmann
Talden Farias
Recentemente, a Lei 1.701/2022 do Estado de Roraima foi declarada inconstitucional nas ADIs 7.200/RR (proposta pela REDE) e 7.204/RR (proposta pela PGR). A citada e polêmica lei proibia “terminantemente” os agentes dos órgãos de fiscalização ambiental e policiais de destruir e inutilizar os bens particulares apreendidos em operações de fiscalização ambiental. A lei também vedava que os órgãos estaduais detentores do Poder de Polícia ambiental participassem das ações operacionais conjuntas capitaneadas pelo Governo Federal. Em seu voto como relator, o Ministro Luís Roberto Barroso fixou a seguinte tese:
É inconstitucional lei estadual que proíbe os órgãos policiais e ambientais de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos em operações, por violação da competência privativa da União para legislar sobre direito penal e processual penal, para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988) e por afronta ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988).
Os argumentos utilizados para a declaração de inconstitucionalidade da lei estadual são consistentes, uma vez que emanam diretamente da literalidade do Texto Constitucional originário. De toda forma, chama a atenção o fato de a lei estadual, agora formalmente declarada inconstitucional, buscar claramente esvaziar as ações de fiscalização ambiental disciplinadas pela Lei Federal 9.605/1998 (mais conhecida como Lei de Crimes e de Infrações Ambientais) e sua regulamentação, o Decreto Federal 6.514/2008. Na argumentação, o STF fundamentou que caberia à União editar normas gerais de caráter ambiental, consoante previsão do art. 24, §1º da Constituição Federal de 1988, sendo que os Estados somente poderiam editar disciplina no espaço complementar ou supletivo na norma federal.
O art. 72 da Lei 9.605/1998 dispõe sobre as sanções administrativas ambientais, tratando o inciso V especificamente da sanção de destruição ou inutilização. Tal normativa é reconhecida como lei geral, ou norma de alcance nacional, uma vez que a sua observação vincularia todos os níveis federativos. Embora repita o comando genérico em seu art. 101, o decreto federal regulamentador estabelece condições gerais da aplicabilidade do procedimento de “destruição dos instrumentos utilizados na infração”:
Art. 111. Os produtos, inclusive madeiras, subprodutos e instrumentos utilizados na prática da infração poderão ser destruídos ou inutilizados quando: I - a medida for necessária para evitar o seu uso e aproveitamento indevidos nas situações em que o transporte e a guarda forem inviáveis em face das circunstâncias; ou II - possam expor o meio ambiente a riscos significativos ou comprometer a segurança da população e dos agentes públicos envolvidos na fiscalização. Parágrafo único. O termo de destruição ou inutilização deverá ser instruído com elementos que identifiquem as condições anteriores e posteriores.
A destruição de instrumentos utilizados na prática da infração são também, ao lado do embargo e da suspensão de atividades, dentre outras, chamadas de medidas cautelares. Tratam-se de medidas antecipatórias utilizadas pelos órgãos de fiscalização, dentro do seu poder de polícia, as quais buscam evitar ou mitigar a ocorrência dos danos e/ou infrações ambientais. Consoante dispõe o art. 101, § 1º, tais ações “têm como objetivo prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo”. Em regra, as medidas são impostas no início do processo sancionador e devem ser confirmadas no momento do julgamento do auto de infração.
O detalhamento dos procedimentos a serem observados, quando da aplicação das medidas cautelares pelo órgão ambiental, está expressamente previsto no Capítulo II do Decreto, que trata “Do Processo Administrativo para Apuração de Infrações Ambientais”, do mencionado decreto. O caput do art. 94, na abertura do capítulo, aponta que “regula o processo administrativo federal para a apuração de infrações administrativas”, informação esta que também consta da epígrafe da norma. Já o parágrafo único do dispositivo versa também sobre as regras de funcionamento da Administração Pública Federal em matéria ambiental:
Art. 94. Este Capítulo regula o processo administrativo federal para a apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Parágrafo único. O objetivo deste Capítulo é dar unidade às normas legais esparsas que versam sobre procedimentos administrativos em matéria ambiental, bem como, nos termos do que dispõe o art. 84, inciso VI, alínea “a”, da Constituição, disciplinar as regras de funcionamento pelas quais a administração pública federal, de caráter ambiental, deverá pautar-se na condução do processo.
Constata-se, portanto, que as indicações previstas no art. 94 e seguintes são referentes ao processo administrativo sancionador em nível federal, as quais dizem respeito diretamente ao IBAMA e ao ICMBIO, que, por serem os órgãos executores da Política Nacional do Meio Ambiente no âmbito da União, segundo o art. 6º, IV da Lei 6.938/1981, são os responsáveis pela aplicação de tais medidas. De outra banda, em que pese a crítica da doutrina, é importante lembrar que a jurisprudência já havia admitido a possibilidade de o Decreto Federal 6.514/2008 atuar como regulamentador do art. 70 da Lei 9.605/1998. O STJ entendeu, em sede do Recurso Especial 1091486, que é possível utilizar essa via para fazer o detalhamento das infrações administrativas sem que isso afronte o princípio da legalidade em sentido estrito. O Ministro Antônio Herman Benjamin, por exemplo, ao relatar o Recurso Especial 1137314, também seguiu por essa senda:
De forma legalmente adequada, embora genérica, o art. 70 da Lei 9.605/1998 prevê, como infração administrativa ambiental, "toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente". É o que basta para, com a complementação do Decreto regulamentador, cumprir o princípio da legalidade, que, no Direito Administrativo, não pode ser interpretado mais rigorosamente que no Direito Penal, campo em que se admitem tipos abertos e até em branco.
O entendimento do STJ é que o decreto federal é plenamente aplicável para fins de capitulação das infrações administrativas ambientais, nos termos dos arts. 23 e 24 da Constituição Federal, além do art. 70 da Lei 9.605/1998. Nesta situação, a União atua como legislador nacional, de forma que suas normas não poderão deixar de ser observadas pelos demais níveis federativos. Isso implica dizer que não há necessidade de legislação específica do outro ente, declarando quais são as infrações ambientais aplicáveis, podendo ser utilizado o Decreto 6.514/2008 como norma geral. Segundo tal jurisprudência, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, na condição de integrantes do SISNAMA, devem fazer uso da legislação nacional no que tratava da tipificação das infrações, independentemente de legislação local indicando a recepção destes diplomas legislativos.
Sendo assim, para o detalhamento das infrações ambientais, o decreto federal é admitido como norma de alcance nacional. E em relação aos procedimentos, a sistemática teria de ser a mesma? A decisão das ADIs 7.200 e 7.204, que entendeu pela inconstitucionalidade da Lei 1.701/2022 do Estado de Rondônia, vai nesse sentido. E ratifica os argumentos do julgamento da ADI 7.203, que teve como relator o Ministro Gilmar Mendes, ao declarar a inconstitucionalidade da Lei 5.299/2022 do Estado de Rondônia, que proibiu os órgãos ambientais e a polícia militar de destruir e inutilizar os bens apreendidos nas operações lá realizadas.
Resta agora refletir sobre as consequências práticas desses dois julgados. Obviamente, a lei estadual declarada inconstitucional procurou esvaziar o controle ambiental, ao tentar enfraquecer a fiscalização ambiental, o que atenta contra o direito fundamental ao meio ambiente. Entretanto, seria possível obrigar os demais níveis federativos a não apenas seguirem os procedimentos do decreto federal, mas também a não poderem instituir nenhum procedimento distinto? Mesmo quando o decreto federal expressamente declara que os procedimentos são destinados aos órgãos ambientais federais?
A adoção desse entendimento, em sua literalidade, poderia obrigar os demais entes a adotar procedimento de conciliação quando o decreto federal trouxe essa inovação, bem como a “extingui-lo” agora que tais dispositivos foram revogados. Da mesma forma, o procedimento de conversão do valor da multa e seus respectivos descontos deveriam obrigatoriamente ser iguais aos da União, e tendo os mesmíssimos requisitos. É verdade que vários Estados e Municípios fazem uso do decreto federal em seus procedimentos, o que não é vedado, desde que não exista legislação própria sobre o assunto. Contudo, uma coisa é o ente federativo optar por fazer uso, outra é ele ser obrigado a tanto.
Mais do que respostas prontas e definitivas, o objetivo deste artigo é levantar questionamentos a respeito do entendimento do STJ e do STF sobre isso. Afinal de contas, até que ponto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estão vinculados aos procedimentos do processo administrativo ambiental estabelecidos de forma infralegal pela União?
Eis, portanto, o debate que precisa ser enfrentado com maior profundidade pela doutrina especializada.