Limites à Busca pela Verdade Real no Direito Ambiental – Breve Considerações sobre o REsp nº 2.000.881/MT

Leonardo V. P. Freire
Fábio Pereira Flores

O Leading Case do Recurso Especial nº 2.000.881/MT. Cenário de Origem.

Imagine o seguinte cenário: durante o curso de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual contra parte privada versando sobre suposto desmatamento irregular ocorrido em área florestal, após o regular processamento do feito, o juiz de origem intimou as partes para especificarem provas a produzir. Nessa oportunidade, o representante do Ministério Público renunciou ao seu direito processual à elaboração de provas suplementares, informando que os elementos pré-constituídos anexados ao processo já seriam suficientes a comprovar seu pleito.

Contudo, encerrada a fase processual e quase um ano após audiência de instrução e julgamento da ação, outro representante do Ministério Público (que veio a substituir aquele inicialmente lotado na atuação da referida ação) requereu ao juízo a quo a realização de prova pericial, bem como a nomeação de funcionário do próprio Ministério Público como perito. A despeito daquela renúncia e encerramento da fase probatória, o magistrado de primeira instância não só deferiu a elaboração de perícia, como também nomeou o referido funcionário como perito judicial para o caso. Por sua vez, o Tribunal de origem manteve integralmente a decisão com base na proteção e prevalência do interesse indisponível ambiental em jogo:

Tal cenário não é imaginário e ocorreu nas instâncias de origem que formaram o recurso especial nº 2.000.881. No caso, em sede de decisão monocrática proferida em recurso especial (2.000.881), o STJ ratificou o entendimento do Tribunal por considerar que o referido posicionamento encontraria guarida em suposta jurisprudência pacífica daquela Corte Superior. Para tanto, inclusive, indicou os julgados que formariam aquela dita jurisprudência.

Contudo, ao checar a jurisprudência indicada como balizadora daquela decisão supra, verifica-se que aqueles julgados indicados se relacionam, na verdade, à hipótese totalmente distinta da vergastada no caso. Em outras palavras, tais julgados são tematicamente impertinentes à matéria sub judice e, logo, inaplicáveis como elementos de fundamentação. Ou, dito ainda de outro modo, não existe (até então) tal jurisprudência (muito menos pacífica).

A despeito desse vício fundamentação, por si censurável e gerador de potenciais nulidades – como a seguir destacado –, a ausência daquela alegada jurisprudência torna o recurso especial nº 2.000.811, na prática, efetivo leading case (primeiro precedente) sobre a possibilidade (altamente questionável) de inaplicabilidade da preclusão lógica, temporal e consumativa ao Ministério Público em sede de dilação probatória de ações ambientais.

Sempre reverenciando o trabalho altamente respeitável e profissional dos operadores envolvidos– que, em suas funções, desempenham com primor seus mandatos – o efeito pedagógico, as possíveis repercussões gerais e consequências sistêmicas do referido precedente legitima sua análise por todos aqueles interessados na operacionalização do Direito Ambiental Brasileiro.

A Busca pela Verdade Real no Direito Ambiental: Breves Considerações

Diversamente do sustentado naquela decisão, os citados julgados referidos pelo STJ se referem, na realidade, a posicionamentos proferidos por essa corte superior em casos atinentes à chamada inoperância da preclusão pro judicato, a qual consiste em permitir ao magistrado (enquanto destinatário final das provas do processo) determinar espontaneamente (ex officio) a elaboração de provas que, embora não requeridas pelas partes no prazo processual legalmente determinado, sejam úteis ao esclarecimento dos fatos e, portanto, ao deslinde do processo.

A inoperância da preclusão pro judicato decorre do princípio processual da busca pela verdade real dos fatos, aplicável com maior valência em processos versantes sobre direitos indisponíveis. Maior valência, porque – como amplamente sabido – nenhum valor jurídico é absoluto em si e, mesmo a busca pela verdade real encontra limites, sejam esses materiais (quanto ao próprio conceito de verdade processual) como também processuais.

Nesse sentido, o conceito de verdade (jurídica) associada à instrução probatória judicial não se atém à um exame alético descritivo-empírico sobre as circunstâncias de certo fato tal como ocorrido, a partir de valências binárias de verdadeiro e falso, mas sim um juízo de valor (cognitivo) – informado pelas regras processuais – acerca das condições de procedibilidade de uma determinada proposição (jurídica), a partir de valências válidas, inválidas ou impertinentes, enquanto método investigativo próprio que forma, informa e controla o sistema jurídico.

Sem adentrar ao mérito probatório da controvérsia e valoração da prova, decorrente daquele juízo cognitivo, no caso, todavia, a controvérsia recursal sob exame não diz respeito à hipótese de preclusão pro judicato. Trata-se, na verdade, como antecipado, de temática totalmente diversa referente ao deferimento extemporâneo de prova requerida pelo Ministério Público, após o encerramento da fase processual e renúncia tácita à sua elaboração. Equivaler (ou estender) a inoperância do instituto da preclusão (pro judicato) à hipóteses de pedidos probatórios extemporaneamente feitos pelo Parquet, sendo esse parte do processo diretamente interessada (e não sujeito destinatário final das provas) parece extrapolar significativamente as aqueles limites (inclusive do texto normativo processual, notoriamente o previsto no artigo 489, §1º, V, do CPC, independentemente de suas possibilidades hermenêuticas possíveis), colocando sob risco a paridade de armas entre as partes, bem como a imparcialidade e eficiência do processo.

Potenciais violações e nulidades incorridas pelo Leading case

A paridade de armas, amplamente reconhecida e valorizada no sistema jurídico, refere-se à igualdade de condições entre as partes envolvidas em um litígio, assegurando que ambas tenham acesso aos mesmos recursos e meios para apresentar suas alegações e contestar as do adversário. Dito de outra forma, é necessária para “(…) assegurar que as partes gozem das mesmas oportunidades e faculdades processuais, atuando sempre com paridade de armas” (ARE 648629/RJ, Rel. Min. Luiz Fux), evitando que uma delas possua uma vantagem desproporcional sobre a outra e, com isso, se tenha um ambiente processual mais justo e equitativo, onde os direitos fundamentais de todas as partes são respeitados.

Transportando o pensamento ao caso sob análise, verifica-se que não apenas houve um tratamento diferenciado em favor de uma das partes, como se percebe que tal violação foi requerida por aquele que tem o dever legal, institucional e constitucional de fiscalizar a aplicação da lei (e aqui não se entenda apenas da lei penal contra o infrator, mas também, e não menos importante, das garantias e direitos constitucionais de ampla defesa e contraditório).

Outra questão que advoga contra o entendimento aqui criticado é que a unidade e a indivisibilidade são princípios institucionais do Ministério Público (artigo 127, §1º, da Constituição Federal) e os atos já praticados nos autos vinculam a instituição, não havendo qualquer previsão legal que autorize a retificação de atos anteriores para adequá-los ao entendimento do novo promotor, sob pena de permitir que cada troca na condução dos processos enseje uma revisão dos atos alcançados pela preclusão consumativa, o que não faz parte das prerrogativas do Parquet (art. 41, incisos I a XI, da Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993).

Confusão entre Direito Material e Direito Processual

Sem prejuízo das ponderações acima, a ratificação pelo STJ do posicionamento adotado nas instâncias de origem valida indevidamente confusão conceitual incorrida entre a natureza indisponível do direito material protegido pelo Direito Ambiental e a relativa peremptoriedade de regras processuais que instrumentalizam sua efetivação.

Enquanto direito fundamental, inalienável, indisponível, irrenunciável e imprescritível(art. 225, CF/88), a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado é exercida por intermédio de determinados instrumentos legais, institucionalizados com vistas a assegurar o seu gozo, por meio de procedimentos que garantem a todos adequada informação, ampla participação pública e efetivo acesso à justiça, tal qual ocorre por meio de Ação Civil Pública (art. 1º, I, da Lei nº. 7.347/1985).

No caso concreto, o Ministério Público teve respeitado o seu direito de ação e exercício pleno do direito de defesa, inclusive com intimação pessoal (art. 41, IV, da Lei 8.625/93) para informar eventual interesse na produção de provas, com manifestação expressa e indene de dúvidas acerca da sua convicção de que as provas produzidas eram suficientes e afirmação de desinteresse na produção de novas provas.

Ao afirmar que não tinha interesse, o Parquet optou por não exercer seu direito de produzir novas provas, o que não se confunde com o direito/dever de defesa do meio ambiente, este exercido por meio do acesso ao Judiciário. O direito indisponível ao meio ambiente equilibrado não abarca a retificação de atos processuais, já praticados, por divergências de entendimentos ou de estratégias processuais, especialmente quando não há nulidade.

Enquanto, a defesa ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é, pois, um direito indisponível, o pedido de produção de prova é uma prerrogativa processual, suscetível às condições de procedibilidade (juízo de validade) das regras processuais.

Assim, não se pode confundir a defesa do meio ambiente equilibrado (direito indisponível) com a ausência de interesse na produção de determinada prova (prerrogativa processual). Caso contrário, ao se firmar o entendimento de que a produção de prova pericial em ACP ambiental é um direito indisponível, todo promotor de justiça que tiver deixado de requerer a produção de todas as provas em direito admitidas incorrerá em infrações de ordem administrativa, civil e penal.

Consequências Sistêmicas e Necessidade de Revisão do Precedente

Ainda que esse posicionamento (diga-se isolado e não pacífico) do STJ firmado no recurso especial nº 2.000.881 venha a prevalecer, ao menos que seja estendido a todas as partes do processo. Ainda assim, a manutenção do referido entendimento traz graves, senão, catastróficas consequências.

Lides ambientais comumente são compostas por litisconsórcios (passivos e ativos), quando não ainda atraem terceiros interessados e amici curae. Além disso, as provas no processo ambiental, especialmente, aquelas relacionadas à identificação e dimensionamento do dano, muitas vezes implicam em provas complexas, baseadas em cenários dinâmicos e, não raras as vezes, prolongados no tempo (afinal o tempo da natureza é próprio e, por vezes, ultrapassam o período de uma vida humana).

Em termos práticos, a manutenção do referido entendimento manifestado pelo STJ no recurso especial nº 2.000.881 abrirá margens à perpetuação ad eternum de lides ambientais, fomentando não só o prolongamento de fases processuais intermináveis, como também, ao extremo a possibilidade de reabertura de ações transitadas e julgadas para rediscussão de provas, incentivo ao ajuizamento de ações rescisórias e/ou querela nullitatis, ameaçando (quiçá) a própria estabilidade da coisa julgada material. Em suma, o posicionamento adotado pelo STJ incentivará a principal mazela que essa corte visa combater: a ineficiência do sistema judicial brasileiro.

Com todo respeito, na posição de observadores qualificados da jurisprudência e membros de associação diretamente interessada no estímulo ao debate do Direito Ambiental Brasileiro, rogamos que o STJ reflita sobre o posicionamento ora examinado, em prol da (real) efetividade do processo civil ambiental e, consequente, tutela de seus direitos indisponíveis.