Mercado de carbono: a pressa é inimiga da perfeição
Luciana Vianna Pereira
Ao apagar das luzes de 2023, em meio a muito debate, foi aprovado, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei que pretende regulamentar o mercado de carbono no Brasil. Por uma manobra no regimento, o texto, já aprovado no Senado, então numerado como PL 412/2022, foi incluído como um substitutivo a um antigo PL de iniciativa da Câmara (PL 2148/2015) que originalmente tratava da tributação ambiental.
O PL 2148/2015 foi incluído em pauta para votação no fim da tarde do dia 21/12 e a votação se iniciou por volta das 20h do último dia de sessão parlamentar de 2023.
A confusão e a evidente falta de preparo foram tantas que, ao longo da transmissão da votação, por diversas vezes, o narrador dizia que o PL que estava em votação tratava da tributação ambiental, evidenciando o total açodamento e falta de conhecimento do que estava acontecendo naquela casa.
O texto aprovado mudou quatro vezes em três dias, sendo duas últimas mudanças realizadas ao longo da tarde do próprio dia 21/12 e a última delas ocorreu, nada mais nada menos que durante a sessão.
Do texto, aprovado depois das 22h da noite, destacam-se alguns pontos bastante relevantes, como: (i) a inclusão de um tipo novo de título financeiro – o CRAM – que foi debatido em 2022 e criado em trabalho realizado no LAB, por ação e iniciativa de securitizadoras, responsáveis pela emissão do próprio CRAM; (ii) a exclusão do crédito de carbono como um título negociável no mercado financeiro, a não ser que este mesmo crédito seja lastro para o CRAM; (iii) as restrições impostas aos chamados programas jurisdicionais, de iniciativa de entes públicos e que vem sendo amplamente demandados pelo mercado voluntário e regulado internacionais; (iv) a exclusão do agro e de empresas de resíduos sólidos do mercado regulado de carbono; (v) a criação artificial de demanda para créditos de carbono para seguradoras, entidades de previdência e proprietários de veículos; (vi) a inclusão de tratamentos distintos para programas jurisdicionais, projetos estatais, projetos privados e projetos realizados em parceria com desenvolvedores de projetos em área pública; (vii) a criação de definições antes inexistentes, mas profundamente necessárias, do gerador, desenvolvedor; e (viii) a definição da natureza do crédito de carbono como um fruto civil.
Sem ter a pretensão de discorrer em detalhes sobre todos os pontos em que o PL 2148 inovou, para o bem e para o mal em relação ao PL 412, alguns pontos chamam especial atenção e devem ser melhor explorados.
Neste texto, trataremos especialmente das restrições impostas aos programas jurisdicionais e da exclusão do crédito de carbono como um título negociável no mercado financeiro e com natureza jurídica de fruto civil e do CRAM.
Começando pelo CRAM, é preciso entender de onde surgiu a ideia de sua criação. O CRAM, certificado de recebíveis de créditos ambientais foi idealizado e amplamente defendido durante os trabalhos do LAB – Laboratório de Inovação Financeira, iniciativa coordenada entre a CVM e o BID e que congrega diversos atores de mercado, ao longo de 2022. A ideia de se desenvolver um título novo servia para suprir uma lacuna legislativa: a ausência de definição da natureza jurídica do crédito de carbono e a inexistência de seu reconhecimento como um título negociável no mercado financeiro. Assim, por iniciativa de securitizadoras – emissoras de certificados de recebíveis – se propôs a emissão de uma norma que autorizasse a criação desse título novo.
Repito aqui o que defendi ao dissentir da ideia de criação do CRAM: criar um título novo num mercado ainda em formação não parece fazer nenhum sentido. A ideia de criar um novo título porque um título existente e amplamente reconhecido no mercado internacional que é o crédito de carbono não está devidamente regulado na legislação nacional, não ajuda na compreensão desse mercado, nem na sua expansão. Uma coisa é se criar um derivativo – que apoiaria irrestritamente – outra bem diferente é criar um remendo por ineficiência do legislador brasileiro.
Pois bem. A criação do CRAM e a crítica acima tem conexão direta com a segunda crítica ao texto final do PL 2148/2015: a exclusão do crédito de carbono como um título negociável no mercado financeiro. O crédito de carbono chegou a ser inserido como título passível de negociação no mercado financeiro nas versões 4 e 5 do PL que circulou ao longo da derradeira semana do ano legislativo. Porém, inexplicavelmente, foi excluído da versão 6, que foi afinal aprovada.
O crédito de carbono é, pela redação do PL 2148/2015 (e já o era no texto final do PL 412/2022), o título negociável no mercado voluntário de carbono. É um título conhecido e reconhecido no mercado internacional. É produto já passível de certificação, registro, medição e emissão internacionalmente.
Seu reconhecimento como um título negociável no mercado financeiro traria a grande vantagem de permitir ao país se beneficiar das negociações dos títulos que, em última análise, representam as ações desempenhadas no país em projetos desenvolvidos em terras brasileiras. Além disso, permitiria a escalada desse mercado, tão carente de transparência de preços, segurança de negociações, padronização de contratos.
A exclusão do crédito de carbono do capítulo que trata das negociações no mercado financeiro tem um só resultado: a manutenção das operações desse título através de uns poucos intermediários, num mercado de balcão desorganizado, em que se perpetua o beauty shop, a falta de transparência e falta de uniformização das operações. Estes são problemas que há anos vem impedindo o crescimento do mercado de carbono, mantendo os preços do crédito de carbono brasileiro baixos e impedindo o surgimento do mercado secundário. Basicamente, o problema é achar que teremos resultados novos, fazendo as mesmas coisas que sempre foram feitas.
A redação do PL também criou a estranha situação de definir o crédito de carbono como algo que é diferente dos demais títulos do mercado de carbono. A lógica (acertada, diga-se de passagem) da redação do PL 412 é a de que a Cota Brasileira de Emissões – o CBE, equivale à allowance do mercado de carbono europeu, enquanto o Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE) equivaleria aos créditos de carbono, enquanto títulos representativos de remoção e redução de emissões, que fossem admitidos ao mercado regulado brasileiro. Nesse sentido, haveria dois grandes grupos de produtos – os CBEs e os créditos de carbono, que poderiam ou não ser admitidos a compensação no mercado regulado, se (e somente se) tivessem sido emitidos sob metodologias aprovadas pelo regulador do mercado regulado e até o limite percentual que tivesse sido permitida pelo regulador.
Ocorre que essa lógica foi deturpada no texto atual, que criou quatro títulos distintos uns dos outros, excluindo a relação natural e desejável entre o crédito de carbono e o CRVE. Não é preciso dizer que a mudança no texto aprovado do PL 2148 criou uma complexidade desnecessária a um mercado que já não é simples, mas que tende, internacionalmente, a seguir uma lógica comum.
Por fim, mas não menos importante, tratemos das restrições impostas aos projetos estatais e aos programas jurisdicionais. Mas antes, talvez seja uma boa ideia explicar o que é um programa jurisdicional.
Um programa jurisdicional é uma forma de desenvolver projetos de geração de créditos de carbono em que um ente governamental: a União Federal, um Estado ou um Município (no caso da organização política brasileira) figura como o coordenador de projetos. Funciona assim: um ente cria um programa sob o qual podem ser realizados diversos projetos de geração de créditos de carbono e os créditos gerados seguem a regra de distribuição definida no programa. Os projetos que aderem ao programa jurisdicional são comumente chamados de projetos aninhados (nested projects). A Verra, uma das maiores certificadoras de projetos de geração de créditos de carbono do mundo possui uma metodologia reconhecida para os programas jurisdicionais. E, segundo as metodologias de programas jurisdicionais existentes, a decisão de adesão ou não a um programa jurisdicional é sempre do titular do imóvel sobre o qual o projeto irá se desenvolver.
A vantagem desse tipo de programa é a consolidação de informação por um ente governamental, capaz de coordenar ações e cobrir um território mais amplo, assegurando que não haja multiplicidade de projetos sobre um só imóvel, perante múltiplas certificadoras (o que causa dupla contagem e invalida os créditos gerados), resultando, portanto, em maior segurança jurídica e uniformidade de critérios e regras para os créditos.
Ademais, permite ganho de escala a partir da congregação de iniciativas e ações combinadas em imóveis públicos e privados. A preservação de áreas, por exemplo, em uma unidade de conservação de gestão estatal e em propriedades particulares podem ficar todas sob um mesmo programa guarda-chuva, gerando, em cada caso, crédito de carbono ou recursos financeiros, para o poder público pelos créditos gerados nas UCs e para os titulares de cada um dos imóveis aderentes sobre os quais as ações são desenvolvidas.
Não é por outro motivo que os créditos obtidos a partir de programas jurisdicionais tem produzido créditos de maior valor (ou seja, maior preço) e sido objeto de interesse de diversos Estados brasileiros.
Diferente do que foi apresentado como justificativa para restrições impostas aos programas no PL, os programas jurisdicionais não importam em uma apropriação do direito de proprietários privados. Muito pelo contrário: eles unificam iniciativas privadas que poderiam, pelos custos envolvidos no desenvolvimento de projetos, ser alijadas da participação no mercado de carbono, como, por exemplo, as pequenas e médias propriedades privadas.
Voltemos, então, às restrições impostas pela redação do PL, que consiste, essencialmente na vedação à venda antecipada ou promessa de venda. Pois bem. A proibição completa às chamadas vendas a futuro foi incluída sob a justificativa de evitar dupla contagem.
Entretanto, a restrição foi mais abrangente do que o necessário e acabou proibindo uma forma absolutamente legítima de financiamento de projetos de carbono. É evidente que não se pretende vender a futuro algo que nunca será gerado. Porém, não deveria haver restrição sobre áreas aderentes (nested projects) aos programas e sobre as próprias áreas públicas, sobre as quais o próprio ente governamental é o responsável pelas ações de preservação.
Nesse sentido, em que pese a boa vontade e a urgência de se aprovar um mercado de carbono no país, seja pela pressão interna, seja pela pressão externa, é necessário corrigir problemas que podem, ao invés de promover o mercado de carbono e o aproveitamento econômico das riquezas do país, impedi-los por completo e manter toda a desconfiança que hoje pesa internacionalmente sobre os nossos ativos.
É tempo, portanto, de substituir o bordão “feito é melhor que perfeito”, que vem sendo adotado nas aprovações açodadas dos textos do mercado de carbono brasileiro nas casas parlamentares, pelo bordão “a pressa é inimiga da perfeição”, para impingir a necessidade de reflexão séria e redação de um texto que não mate o mercado e nem crie tantos obstáculos e empecilhos que faça com que a lei seja mais uma das que “não pega”, ou pior, se reflita numa segunda capa de uma famosa revista com o Cristo cravado de cabeça no Morro do Corcovado, como uma avestruz envergonhada e decepcionada com mais uma perda de oportunidade do país.
*Publicado originalmente no site Consultor Jurídico