Regularização Fundiária Urbana (REURB) em Área de Preservação Permanente (APP)

Taniara Nogueira Ferreira

Diante da atribuição contida no art. 182, caput, da Constituição de 1988, compete ao Município a ordenação do solo urbano brasileiro. Isso quer dizer que o Poder Executivo Municipal deve se preocupar em fiscalizar todas as intervenções que eventualmente aconteçam em seus territórios.

Ocorre que é bem comum a execução de construções, condomínios e até mesmo bairros sem a devido crivo municipal, estabelecido pela Lei 6766/79, norma que traz as diretrizes gerais sobre o parcelamento do solo urbano brasileiro.

Quando o Estado falha na execução dessa competência fiscalizatória, têm-se a consolidação de um núcleo irregular que, muitas vezes, é permeado por uma série de problemas de ordem urbanística, como a ausência de planejamento estrutural, capaz de fazer com que a população não tenha o devido acesso a serviços públicos e à padrões mínimos de infraestrutura exigidos pela Lei 6766/79, até questões ambientais delicadas, relacionadas à ocupação de espaços ambientalmente protegidos.

Diz-se que a intervenção nesses ambientes sensíveis é uma questão séria porque, além de tal ação ir de encontro aos anseios constitucionais para essas áreas, previstos no art. 225, §1º, III da Lei Magna, muitas vezes ela também coloca em risco a saúde, segurança e a vida dos ocupantes.

Diante da falha estatal para evitar a consolidação de núcleos urbanos informais, bem como da sua decisão pela manutenção da área, faz-se necessário que o Estado promova a regularização das ocupações, até mesmo quando situadas em espaços ambientalmente protegidos, conforme as peculiaridades que serão tratadas a seguir.

Para fins de Regularização Fundiária Urbana (REURB), tem-se como um dos espaços ambientalmente sensíveis relevantes as Áreas de Preservação Permanente (APPs), cujo conceito e rol taxativo encontra-se, respectivamente, no art. 3º, “II”, e art. 4º da Lei 12651/12.

Quando determinado núcleo estiver situado nessas localidades, seja total ou parcialmente, o art. 11, §2º, da Lei da REURB (Lei 13465/17) indica que, para ocorrer a regularização, será necessária a realização de estudos técnicos que justifiquem as melhorias ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior, conforme listagem presente nos arts. 64 e 65 do Código Florestal (art. 11, § 2º, da Lei 13465/17).

O art. 64 da Lei 12.651/12 trata dos estudos técnicos imprescindíveis para a regularização dos núcleos situados em APP classificados como de interesse social (REURB-S), que são as ocupações cuja predominância dos moradores aufere renda familiar inferior a cinco salários mínimos (art. 6º, parágrafo único, do Decreto Federal 9310/18).

Já o art. 65 do Código Florestal se aplica quando a maioria dos moradores possui renda familiar superior a esse teto, situação em que a localidade será classificada como sendo de interesse específico (REURB-E).

No tocante aos núcleos classificados como REURB-E em APP’s, ainda é importante salientar que se uma construção estiver situada a menos de quinze metros do leito do curso d’água, mesmo que sejam realizados os estudos ambientais descritos no §2º do art. 65, a edificação não será regularizada.

Todos esses estudos técnicos aplicam-se somente às parcelas dos núcleos urbanos situados na APP, e podem ser feitos em fases ou etapas, sendo a área não afetada por esses estudos passível de ter o seu projeto aprovado e levado a registro separadamente (art. 12, §3º, Lei 13465/17).

Isso quer dizer que apenas será necessário realizar trabalhos técnicos para os lotes dentro da APP. E esses estudos poderão ser feitos em um segundo momento da REURB, através do destaque da área do projeto inicial, conforme disposto no art. 12, §3º, da Lei 13465/17, o que autoriza o prosseguimento da REURB para o restante do núcleo que não estiver dentro da APP.

Ressalta-se a existência de entendimento doutrinário (CUNHA e MAIA, 2021) que defende o registro do parcelamento de eventual área consolidada em espaço ambientalmente protegido antes mesmo da apresentação dos estudos técnicos, desde que tal informação seja averbada nas matrículas criadas para a APP.

Desta forma, não será necessário sequer destacar o trecho referente à APP do projeto original de REURB, podendo o parcelamento da área ser levado a registro juntamente com o restante do núcleo não situado na localidade sensível.

Salienta-se, no entanto, que esse posicionamento autoriza tão somente o registro do parcelamento antes da elaboração dos estudos ambientais, ou seja, considera-se imprescindível a realização prévia dos trabalhos listados pelo art. 64 e 65 do Código Florestal caso se pretenda titular os beneficiários dos lotes situados nas APPs.

Outra questão relevante sobre o tema se refere à execução de intervenções eventualmente apontadas pelos trabalhos técnicos dos arts. 64 e 65 do Código Florestal. Defende-se que, nesses casos, seja possível a titulação dos indivíduos antes da conclusão das ações listadas desde que alguém assuma o seu cumprimento, através da firmatura de Termo de Compromisso, tal qual ocorre nos casos de implantação de infraestrutura essencial (Lei 13465/17, art. 36. § 3º c/c art. 3º, V e §2º).

Como condição de aprovação da REURB, o termo de compromisso também deverá ser celebrado com o poder público para as situações em que se identifique a necessidade de realização de medidas de mitigação e compensação urbanística e ambiental, nos casos de núcleos classificados como REURB-E (art. 38, §2º, da Lei 13465/17).

Importante destacar que se existirem edificações em APP de indivíduos não classificados como “baixa renda”, mesmo nos núcleos classificados como REURB-S, esses beneficiários terão de arcar com o pagamento de compensação ambiental na proporção do seu lote.

Isso porque a REURB não suprime a característica ambiental da área. A regularização, em verdade, vem apenas para dar regularidade aos núcleos cuja reversão seria mais danosa social e ambientalmente do que a sua manutenção.

Então não se permite novas intervenções nas áreas sensíveis já regularizadas. Segue um exemplo prático que ilustra essa situação: existe um lote não construído em APP de núcleo já regularizado. Mesmo que o titular tente edificar a área, sob o pretexto de que boa parte dos lotes vizinhos já possuem construções que, agora, estão regulares, não lhe será fornecido alvará construtivo, tendo em vista que a localidade ainda é uma APP, cujas intervenções são permitidas somente em casos legais específicos.

E isso não seria classificado como uma “penalização” àqueles que outrora cumpriram a lei pois os indivíduos que construíram na localidade, se não forem classificados como “baixa renda”, terão de arcar com o pagamento de compensação ambiental na proporção do seu lote, mesmo se o núcleo for considerado de interesse social.

Essa situação poderia ser alterada se houvesse a descaracterização técnica da área de preservação permanente, com base em estudos que comprovassem a perda da sua função ambiental, ou, ainda, se fossem realizados os procedimentos de adequação das metragens da APP para áreas urbanas consolidadas, nos termos da Lei n. 14285/21.

No tocante aos prazos para se fazer regularização de ocupações em Áreas de Preservação Permanente, inexiste na Lei da REURB marco temporal especificando uma data limite. Contudo, existe entendimento doutrinário (LOCATELLI, 2021) que defende a aplicação da data limite de 25/05/12 (dia em que entrou em vigor o Novo Código Florestal), em razão do comando trazido pelo art. 8º, §4º, da Lei 12.651/2012, que não admite regularizações futuras em diversos espaços sensíveis, a exemplo das áreas de preservação permanente.

Após todas essas considerações acerca da regularização de núcleos situados em áreas sensíveis, é fundamental destacar uma última situação: caso o núcleo que esteja em APP for considerado consolidado antes de 19 de dezembro de 1979, não haverá a necessidade de se realizar nenhum dos estudos técnicos mencionados, por se tratar de caso de REURB sob o rito “inominado” (REURB-I), situação excepcional que se aplica somente aos núcleos anteriores à Lei 6766/79, nos termos dos arts. 3º, III, c/c 69, §2º da Lei 13.465/17.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, M. F. F.; MAIA, A. C. Treinamento REURB na Prática: Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais. 5ª ed. Belo Horizonte: 07 de abril de 2021.

LOCATELLI, P. A. Elementos para a sustentabilidade da Regularização Fundiária Urbana nas Áreas de Preservação Permanente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 165-171.